No final da visita, fiquei por alguns minutos sozinha com a filha da Dona Ângela.
Tinha sido uma conversa difícil, na qual discutimos com a própria paciente sobre como ela gostaria que nos posicionássemos a partir daquele momento, considerando que seu câncer de pâncreas estava se alastrando rapidamente e sem qualquer resposta ao tratamento quimioterápico.
Apesar de uma profunda tristeza pairando sobre todas nós, o tom da conversa tinha sido de serenidade, e a participação da psicóloga e da assistente social tinham contribuído muito para isso.
A filha da Dona Ângela, de certa forma aliviada com as decisões que tinham sido tomadas ali, me abraçou e perguntou como é que conseguíamos trabalhar com algo tão difícil como Cuidados Paliativos.
Disse que não conseguia imaginar o quanto devíamos presenciar de sofrimento, dor, angústia e tristeza. Na hora eu apenas a abracei de volta e disse que, para todas nós, era um aprendizado infinito.
Mais tarde, lembrando da nossa conversa, fiquei pensando nas dificuldades que realmente enfrentamos ao lidar com esses pacientes e familiares, e me surpreendi ao constatar que o mais difícil não era entrar em contato com o sofrimento em si.
Na verdade, lidar com o sofrimento alheio e ser capaz de promover alívio é altamente gratificante. O mais difícil, a meu ver, é nosso trabalho em equipe. O sucesso no alívio do sofrimento exige que a equipe seja perfeita em suas atitudes, e o grande desafio está justamente aí: equipes perfeitas são formadas por pessoas imperfeitas, trabalhando num mundo pra lá de imperfeito.
Mas, então, como seria possível um resultado como o que vínhamos conseguindo com Dona Ângela? Sabemos que, mesmo imbuídos das melhores intenções, falhas no meio do caminho sempre acontecem.
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A enfermeira pode coletar um exame desnecessário, a assistente social pode fazer um comentário inadequado, o médico pode errar numa das avaliações clínicas, prescrevendo uma medicação que cause efeitos colaterais bem importantes.
Sem falar nas inúmeras deficiências de estrutura física, administrativa e financeira que enfrentamos todos os dias, e que buscamos resolver antes que se tornem um transtorno a mais para o paciente e sua família.
Superar e corrigir essas falhas costuma ser um hercúleo “trabalho de bastidores” que, se mal orquestrado, pode comprometer gravemente a confiança deles na equipe e na instituição, colocando em risco o resultado almejado: o alívio, em todas as suas dimensões.
É aí, bem nesse ponto, que está nosso grande desafio. Uma equipe perfeita é capaz de colocar o paciente e sua família num plano superior ao dos seus interesses individuais.
Ao identificar uma falha, um descuido, uma fraqueza, a primeira atitude é pensar em como poderíamos melhorar como equipe para que o paciente obtenha o melhor resultado possível, e isso não é nada fácil. Exige uma grande disciplina.
É necessário abdicar do nosso orgulho, da nossa necessidade de reconhecimento pessoal. É preciso praticar a humildade e a generosidade para que a falha do outro não se torne sua tortura.
Reconhecer no erro do outro a nossa própria falibilidade. É preciso ouvir compassivamente, agir cautelosamente, e cultivar o respeito (profundo e irrestrito) pela competência do parceiro de equipe. É preciso confiarmos uns nos outros de forma incondicional.
Sem isso, erros se tornam simplesmente acusações dolorosas, que em nada ajudam a quem realmente precisa: o paciente em sofrimento. Usar os erros dos outros para exaltar a própria competência técnica é um sinal claro de falta de inteligência emocional e de compaixão.
E é uma armadilha sedutora para nós, simples humanos, mergulhados em nossas necessidades de atenção e de reconhecimento, e cheios de carências e inseguranças. Um teste ininterrupto a respeito de como controlamos nossa própria arrogância.
Se eu pudesse voltar à minha conversa com a filha da Dona Ângela, e ela me perguntasse de novo como conseguimos trabalhar com algo tão difícil como Cuidados Paliativos, creio que minha resposta seria outra.
Eu diria que difícil é buscarmos a melhor versão de nós mesmos pelo maior tempo possível, e saber que cada parceiro de equipe faz exatamente a mesma coisa.
Difícil é desejar, com todo o coração, que o outro se supere a cada dia, e tomar atitudes que permitam sua evolução pessoal. É enxergar no sucesso dos outros – paciente, familiares e equipe profissional – o nosso próprio sucesso. Difícil, de verdade, é encontrarmos o ser divino que habita cada um de nós.
Fonte:No Final do Corredor