Era 19 de abril de 1969 e a escritora brasileira Clarice Lispector foi incumbida de entrevistar o poeta chileno Pablo Neruda, que já era considerado à época um dos mais importantes nomes da poesia em língua espanhola no século XX. O local era um apartamento onde se hospedava Neruda quando ia ao Rio de Janeiro – por coincidência, o mesmo edifício O resultado da entrevista foi registrado por Lispector na forma de uma apaixonada crônica, publicada no livro “De Corpo Inteiro”, Editora Rocco, em 1999. Reproduzimos aqui apenas o jogo de perguntas e respostas entre entrevistadora e entrevistado.
Você se considera mais um poeta chileno ou da América Latina?
Poeta local do Chile, provinciano da América Latina.
Escrever melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.
Quem é Deus?
Todos algumas vezes. Nada, sempre.
Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?
Político, poético. Físico.
Como é uma mulher bonita para você?
Feita de muitas mulheres.
Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?
Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?
Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?
Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum tempo escrevi em um poema: “Se tivesse que nascer mil vezes./ Ali quero nascer./ Se tivesse que morrer mil vezes./ Ali quero morrer…”
Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de Magalhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.
Em você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?
Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia insensível.
Diga alguma coisa que me surpreenda.
748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)
Você está a par da poesia brasileira? Quem é que você prefere na nossa poesia?
Admiro Drummond, Vinícius, Jorge de Lima. Não conheço os mais jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos. O poema que mais me agrada é o “Defunto”, de Pedra Nava. Sempre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os lugares.
Que acha da literatura engajada?
Toda literatura é engajada.
Qual de seus livros você mais gosta?
O próximo.
A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América Latina”?
Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
Qual é o seu poema mais recente?
“Fim do Mundo”. Trata do século XX.
Como se processa em você a criação?
Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.
A critica constrói?
Para os outros, não para o criador.
Você já fez algum poema de encomenda? Se não o fez faça agora, mesmo que seja bem curto.
Muitos. São os melhores. Este é um poema.
O nome Neruda foi casual ou inspirado em Jan Neruda, poeta da liberdade tcheca?
Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.
Qual é a coisa mais importante no mundo?
Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.
O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
Depende da hora do dia.
O que é amor? Qualquer tipo de amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.
Você já sofreu muito por amor?
Estou disposto a sofrer mais.
Quanto tempo gostaria você de ficar no Brasil?
Um ano, mas depende de meus trabalhos.
– Pablo Neruda foi um poeta chileno, uma das vozes poéticas mais relevantes da poesia no século XX. Foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1971, dois anos antes de sua morte em circunstâncias que ainda hoje dão margem a teorias conspiratórias, já que Neruda era uma voz ativa contra o regime recém-instalado de Augusto Pinochet e há suspeitas de que tenha sido assassinado por aquele regime ditatorial.
Clarice Lispector era ucraniana de nascimento, mas chegou ao Brasil quando tinha apenas um ano e meio de idade, fugindo com seus pais da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa. Publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, em 1943 – e ao entrevistar Neruda, em 1969, já era considerada uma das vozes femininas mais importantes na literatura brasileira. Faleceu em 1977.